S. João
(7,53-8,11) narra-nos o bem conhecido encontro de Jesus com a mulher
adúltera e os seus acusadores. De tão sugestiva, sigo de
perto a leitura que S. Gaburro faz deste relato, interessado, como
ele, em colher o timbre e a modelação da voz de Jesus como lugar de revelação
da verdade de Deus e da nossa própria existência. Aqui, o conteúdo não seria
acolhido sem a forma, neste caso, sem o modo de dizer e a sonoridade,
precisamente porque esta forma é já o conteúdo. A graça que salva
assume o timbre de uma voz que toca afectivamente, a eloquência de um gesto que
justifica a vida, a autenticidade de uma presença que restitui cada um à
verdade do que é. E, aí, em verdade, está Deus que salva-guarda e regenera a
vida.
Jesus está
sentado a ensinar. A sua voz en-sina, assinala precisamente porque imprime um
sinal. Mas eis que Jesus se cala e, em silêncio, deixa espaço para que outras
palavras se possam dizer e outras vozes se façam ouvir. Porém, as que chegam agora são de acusação e de julgamento. São ditas sobre
uma mulher apanhada em flagrante adultério, exposta na impúdica praça de todos
os olhares. Num triste espectáculo público, circundam-na inúmeros dedos
apontados, num rebuliço acusatório insuportável. «De um lado, o vociferar
agressivo, do outro, o silêncio de Jesus. As vozes que se levantam trazem a
ironia (“Mestre”), o veredicto já dado (“Moisés mandou-nos lapidar mulheres
como esta”) e a armadilha (“Tu, o que dizes?”)». A esta provocação, «Jesus
responde em silêncio com o gesto de se curvar e de marcar a terra com o
dedo» . Eis, então, que, vinda do seio do silêncio, sensível e
reflexivo, a voz de Jesus re-nasce. «O burburinho das vozes encontra atento o
ouvido de Jesus, mas, sobretudo, o seu sentir, o horizonte com o qual ele está
diante da vida», pre-sentindo o que cada um sente. «Os tons, os timbres, a
raiva, a vontade de juízo sumário encontram hospitalidade e pro-vocam a sua
voz». Então, levantando a cabeça e rompendo o silêncio, Jesus
diz: «O impecável de entre vós seja o primeiro a atirar sobre ela uma pedra»
(v.7). É «uma voz que dis-trai, no sentido em que, com força, faz sair os seus
interlocutores do ciclo vicioso» de um esquema exclusivamente processual e
jurídico. Poderia uma vida humana caber nesse procedimento sumário? Poderia a
verdade de Deus e a sua justiça esgotar-se nessa ânsia de punição? Que
satisfação seria dada ao criador a aniquilação tão violenta de uma sua
criatura? «Com uma delicadeza inaudita, a voz passa pelas fendas da
consciência». Con-vocado, Jesus con-voca. Pro-vocado, Jesus pro-voca. Da
«selva das vociferações mortíferas», nasce a «voz que quer a vida» .
Dada a palavra ao excesso de sentido que faltava acolher, Jesus curva-se,
de novo. Quanta eloquência podemos colher neste gesto silencioso de se curvar,
depois de dizer palavras tão elementares. Capaz de recordar o essencial e,
assim, de interpelar, Jesus faz regressar o silêncio. Calam-se as vozes
venenosas e mortais. Baixam-se os dedos da acusação legal. Caem por terra
as pedras prontas a ferir, até à morte, em nome de um Deus que não se liga de
afecto. A autoridade e a modelação da voz parecem bastar para que Jesus
revele quem é, de onde vem e para onde aponta, revelando, ao mesmo tempo, a ambiguidade
violenta das vozes acusadoras e da sua religião, uma religião que não liga, só
separa.
Tudo foi atravessado e ferido – o ouvido, as mãos, a consciência, o coração, o
passado, o presente, o futuro. Cada um é restituído a si mesmo, como se
ressoasse, novamente, essa pergunta das origens: «Onde estás?» (Gn 3,9).
Um a um, partem de regresso à casa da própria realidade – seja essa grande ou
miserável, graciosa ou desgraçada, é sempre daí que deverá partir quem desejar
avançar. Vão, agora, em silêncio, para que o sentido que ecoa na voz escutada
possa ressoar no íntimo da alma e, assim, faça nascer de novo.
Entretanto,
Jesus ficou sozinho, com a mulher. Colhendo a densidade do momento, disse tão
bem o poeta D. Faria. «Não turbam a água dos meus olhos/ As pedras que
me atiram sobre o corpo// As tuas mãos vazias este muro/ Branco me doem muito
mais» . A verdade de um e de outro encontram-se face a face. Deus
ali tão perto, na voz e no gesto deste homem de Nazaré. Quadro extraordinário e
comovente. Eis a forma do encontro entre o Filho eterno e a história ambígua de
uma filha. Eis a força da graça que salva a vida. Esta vida. Esta
mulher. Porque Deus não Se dá em abstracto, por uma humanidade indistinta, sem
rostos e as suas rugas nem biografias e as suas ambiguidades. «Mulher, onde
estão? Ninguém te condenou?» (v.10). «Ninguém, Senhor». «Também eu não te
condeno». «Vai». «Daqui em diante, não voltes a pecar» (v.11). «A voz
de Jesus tem o poder de restituir à mulher a sua própria voz, aquela que os
acusadores lhe tinham roubado» . Jesus dá a palavra, cede o lugar,
abre espaço. «Mulher!». A origem é recordada como promessa. O horizonte é
reaberto como possibilidade de feliz reconhecimento. À vida é restituída a sua
bênção originária. Pela voz e pelo silêncio, pelos gestos elementares e pela
força da presença, tão íntegra, tão humana, «Jesus atravessa esta página como
um fenómeno pneumático, alimento do Espírito criador, fenómeno musical que
liberta, num único som, notas divinas e notas humanas» . Na
força e na delicadeza deste encontro humano, pressentimos um Deus que crê em
cada homem e em cada mulher, que se compraz e se alegra com o seu nascimento e
o seu contínuo recomeço – Deus em contínuo acto de geração Ele
que vive eternamente dando a vida. Salvaguarda o desejo visceral de
confiança que se dá e se recebe no espaço vital do mútuo reconhecimento. Reconhecer-se
reconhecido num encontro humanamente conseguido diz o mistério de Deus
e o segredo mais íntimo que mantém em vida cada vida que a este mundo venha e a
Deus se dirija.