“Eu sei que Tu estás aí!” - Gritou de novo o astrónomo, sozinho, no meio da noite. O frio entrava-lhe pelas mangas, o pescoço doía-lhe de tanto olhar para o céu. “Deus, eu sei que Tu estás aí. Dá-me um sinal da Tua presença”. Mas mais uma vez ninguém respondeu.
- Sei que Tu estás aí, Deus Antigo, Deus Imenso - sussurrou o astrónomo. Sei que Te moves devagarinho enquanto as estrelas avançam, lentamente, pela noite. Sei que estendes os Teus braços por milhões de anos-luz até às galáxias distantes. Sei que és muito grande e que brincas com Saturno quando o escondes no horizonte. Sei que no Teu jardim plantas constelações feitas de estrelas. Sei da lágrima que choras em cada estrela cadente. Sei que Tu és Antigo, mais Antigo que a própria Terra. Mais Antigo que esta terra que piso e em que um dia hei-de morrer. Eu sei, mas dá-me um sinal da Tua presença.
Esperou. Mas mais uma vez ninguém respondeu. Durante cem noites o astrónomo subira a esta colina. Durante cem noites esperara ansiosamente um sinal, um sinal por mais pequeno que fosse de que estava certo e de que os seus colegas estavam errados. De que ele estava certo quando dizia haver um Deus maior que tudo. Que eles estavam errados quando diziam que era tudo fantasia sua. Que ele estava certo quando dizia que havia um Criador. Que eles estavam errados quando lhe respondiam com fórmulas matemáticas e com teorias de uma explosão inicial que tudo explicaria. E quando se riam na sua cara. E quando o tratavam como cientista de segunda. Agora, pela última vez, voltava-se para cima e pedia um sinal. Nem pedia um sinal para eles. Pedia apenas um sinal para si, um sinal que lhe permitisse dormir em paz, apesar das gargalhadas dos outros. Mas passaram-se cem dias e cem noites e o sinal não veio. Desistiu. Abandonou-se à brisa, a mesma brisa suave e fria que soprava desde a primeira noite e que tantas vezes o irritara por não o deixar concentrar-se.
- Olá -disse uma voz jovem e descontraída.
Boa noite. - Disse o astrónomo surpreendido. - Não te vi. Como chegaste aqui sem que te sentisse? Perdeste alguma ovelha?
- Estava a ver é que te perdia a ti. -Respondeu a voz, a sorrir. -Cem vezes pediste um sinal. Cem vezes te toquei com a minha brisa. Creio que hoje te preparavas para não voltar. - Senhor, Meu Deus! Sois Vós? O Altíssimo? O Deus Antigo? O Deus Imenso? - Bem, se me preferes chamar assim...
- Senhor, Altíssimo, Tu não devias estar lá em cima nos céus? Não é lá que Tu moras? O que estás a fazer aqui?
- Onde eu moro não brilham estrelas, a não ser quando o coração de algum homem se converte ao amor. Nem há constelações, a não ser quando dois ou mais se reúnem em Meu nome. Moro onde tu moras. Compreendes?
-Tu moras onde eu moro?! Eu moro numa casa tão pequena e Tu és tão grande!
- Só é grande quem de encaixa no pequeno por amor.
- Sempre pensei que moravas no céu e que por isso o céu era tão grande. Sabes, às vezes ficava horas e horas sem fim a olhar a imensidão das estrelas e a pensar em Ti. - Eu sei. Eu vi-te quando te comoveste, encostado à figueira, a olhar o céu. Fiquei com vontade de te contar tudo, sobretudo de te dizer isto: O universo não é a minha casa. É a tua. É a casa que Eu criei para ti e para todos os homens. Sabes, às vezes os pais montam casas para os filhos...
- Mas então porque é tão grande o universo? A nós chegavam-nos umas quantas montanhas e outras tantas planícies...
-Sim, se calhar tens razão. Talvez tenha exagerado. Sabes como é, uma pessoa quando é Deus pensa nos homens e entusiasma-se... Pegamos em papel e lápis e desenhamos o Sol e a Terra, um à frente do outro. “Terão a Terra para habitar e o Sol para os aquecer”, pensamos. Fica bem, mas ainda está tudo muito parado. Pensamos então em pôr a Terra a rodar à volta do Sol para haver anos e darem pelo tempo passar. E pomo-la a rodar sobre si mesma para haver dias e noites e poderem recomeçar a vida de novo cada manhã. E já agora inclinamos um pouco o eixo para poder haver estações, e sementeiras e colheitas no tempo certo, e festas. A Terra até fica bem assim -um belo planeta para os homens! - e resolvemos então pôr mais planetas à volta do Sol. Todos diferentes, uns maiores, outros mais pequenos, um com anéis, outro com satélites. Quando damos por ela já vai em nove e resolvemos que chega. De facto de dia chega, mas de noite achamos tudo bastante escuro. Os homens, de noite, morrerão de tédio, pensamos. Começamos então a desenhar estrelas e mais estrelas. Primeiro uma pessoa pensa em pô-las todas alinhadas. Depois começa-se a desarrumar tudo e a fazer constelações. Será bem mais divertido para os homens olhar um céu assim... Começamos com uma constelação, e já agora outra ali mais ao lado, e quando damos por ela já vamos em milhões de galáxias a milhões de milhões de anos-luz. E já agora umas nebulosas, e já agora uns cometas de vez em quando para que fique tudo mais emocionante, e já agora a Lua, para que o mar tenha marés-cheias e marés vazias e eles tenham semanas e ao sábado se possam apaixonar.
-Tenho uma pergunta, Senhor. É uma pergunta um pouco embaraçosa. Os meus colegas dizem que Tu não criaste nada. Que tudo aconteceu numa grande explosão, há muitos milhões de milhões de milhões de anos.
- Bem, imagina que Eu decidi criar através de uma explosão...? Não posso criar da maneira que achar melhor? Também as árvores nascem devagarinho das sementes, isso eles entendem. Entendem que a árvore já lá está toda naquela semente pequena que o tempo irá regar. Eu é que não entendo os teus colegas. Se houve uma explosão, alguma coisa tinha de existir primeiro para que depois houvesse explosão, não é? Os homens, quando descobrem as leis do universo, sentem-se tão contentes que se esquecem de que para haver leis foi preciso que eu inventasse essas leis. Esquecem-se de que para que alguém possa descobrir, alguém antes teve de criar.
- Desculpa-me o atrevimento, Senhor, de Te fazer tantas perguntas, agora que Te tenho aqui à mão... Mas então a Bíblia? Não diz que Tu fizeste tudo em sete dias? Eles dizem que um universo assim nem em sete milhões de anos.
- Os homens esqueceram a poesia. E sem poesia não entendem quando Eu falo. Esqueceram que sete quer dizer plenitude. A plenitude do Meu amor. É isso. É só isso que precisam de saber, para depois poderem olhar pelos telescópios e não se perderem. A Bíblia não diz como criei, diz que criei tudo para vocês, por amor. E explica como é que podem usar de tudo com amor e serem felizes. A Bíblia não é um manual de fabrico, é uma espécie de manual de instruções, percebes?
- Mas então Tu não te importas que nós olhemos o céu com telescópios? E que depois vamos para casa fazer contas e escrever livros de ciência? E depois, se calhar, que nos metamos numas naves para ir ver mais de perto...
- Quero que amem a casa que vos dei. Quero que a contemplem e conheçam. Há nela recantos que ainda nem sonham que existem. Quero que usem a inteligência que vos dei e que os vossos filhos saibam mais que vocês, e que os filhos deles saibam mais que eles. Só tenho pena é que ainda saibam tão pouco.
- Não são segredos a mais? Por que é que não dizes logo tudo de uma vez? Poupavas-nos tanto tempo!
- Sim, Eu podia dizer tudo de uma vez. Podia até escrever uma legenda no céu com letras de raios laser a dizer que o autor sou Eu e que escusassem de pensar mais. Poupava-vos muito trabalho e conseguiria que todos me adorassem. Mas tirava-vos a liberdade e sem liberdade não há amor. Prefiro que me descubram pelo amor. Detestaria que me adorassem à força. Percebes isto?
- Mas, Senhor, assim há sempre quem se esqueça de Ti.
Como é que Tu, sendo tão grande, Te sujeitas a isso?
- Maior grandeza é não se impor. Amar somente, escondido no brilho dos astros, na escuridão da noite, no soprar da brisa. Chamar sem forçar. Falar ao coração daquele que olha o universo, como quem sussurra, e esperar que me deseje. Como tu, nestes cem dias, nestas cem noites em que me abriste o teu coração e eu te desejei e tu me desejaste até quase não poderes mais.
“Deixei-Te até quase não poder mais”, concordou o astrónomo, no cimo da colina. Quando abriu os olhos não viu ninguém. Sentiu apenas a brisa da noite que lhe tocava a cara. Mas agora já não tinha frio.
“O Príncipe e a Lavadeira” (Pe. Nuno Tovar Lemos SJ.)
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