Que alegria estar a escrever-lhe apesar da distância de tempo e espaço que nos separa. Queria conversar com você sobre uma idéia que me apaixonou desde os anos juvenis. Será que ela mantém ainda tal vigor que fale a você em outro contexto bem diferente? Senti-me sempre como alguém enviado ao mundo, metido dentro do mundo, transpirando mundo por todos os poros.
Nos primeiros anos juvenis, o mundo para mim era a corte. Sabe, jovem, nasci numa família nobre, embora já algo decadente. No entanto, meus sonhos e desejos não se detinham no nível de meus familiares. No máximo convivi perto de um duque. Sonhava, sim, casar-me com uma princesa. Nada mais nada menos que a filha do Imperador. Que ousadia!
Entreguei-me de corpo e alma à vida mundana da corte. Ela me trouxe muitos prazeres bem terrenos. Eles me seduziram e me retiveram imerso na vida cortesã. Levaram-me a desregramentos morais. No entanto, conservei sempre o coração honesto, fiel e de cavalheiro. A nobreza para mim não se resumia a sangue. Era cultura, espiritualidade, visão de mundo.
Que diferença do seu mundo, não é verdade? Falar de corte remete-o a algumas cenas televisivas em que você vê algum casamento da família real na Grã Bretanha ou na Suécia ou mesmo na Bélgica. Quem sabe, as últimas imagens que impressionaram o mundo foram o funeral da princesa Diana.
O mundo capitalista criou outra corte. A do dinheiro. Ascende à nobreza quem entra no clube dos mais ricos. O imperador hoje se chama Bill Gates e para se aproximar dele, devemos entrar na ordem dos bilhões de dólares de renda. Às vezes, ponho-me a pensar. Vivendo no seu mundo com meu ideal de nobreza, será que eu me lançaria na aventura da riqueza fácil e abundante? Creio que não. Eu não era nenhum santo. Até mesmo muito pecador. Mas meu idealismo e senso de humanidade não me permitiriam reduzir a nobreza de coração ao dinheiro. Basta um mínimo de grandeza de alma para ver que a cultura do dinheiro é vazia, fútil. Não, ela não me atrairia. Será que atrai a você? Estamos assim tão distantes também nos ideais?
Gostaria de conversar com você sobre outro envio ao mundo. Eu mudei e muito. Tudo veio de um fracasso, de uma dor, de uma operação com longa convalescença. O fracasso foi uma derrota na batalha contra os franceses. A dor foi uma ferida na perna por conta de um balaço que a atingiu e a quebrou. Vieram as operações sem anestesia, ainda animadas pela vaidade de querer continuar elegante e poder dançar. Depois, longo tempo na cama. Aí, nessa convalescença forçada vieram as leituras. Não as que queria de cavalaria, de amores a princesas. Deram-me vidas de santo, vida de Cristo.
Sabe, meu jovem, foi nesse momento que quebrei, não a perna pois já o fizera, mas a couraça do coração. Abri os olhos para outro mundo. Diria mesmo para outros mundos no plural. Entrei numa nova escola. Ignorante das filigranas da ação de Deus no coração humano, comecei a perceber dentro de mim um jogo de sentimentos.
Entravam-me pelo coração dois mundos. Aquele primeiro de amores mundanos, danças, cavaleria, conquista de jovens damas. Enchia-me de gozo, de prazer, mas, depois essas imagens se esvaneciam como bolha de sabão e ficava-me o gosto amargo do vazio. Em outros momentos, sentia o contrário. São Francisco fez isto, São Domingos fez aquilo. E eu? Também o quero. E doía-me deixar atrás de mim aquele mundo anterior. Mas no final do processo interior permanecia um gosto alegre, leve, diferente.
Fico a pensar: será que isso não lhe ocorreu também a você? Sei que muitos de vocês nas férias ou mesmo nos finais de semana lançam-se a missões, a atividades pastorais em lugares difíceis, em contacto com marginalizados e excluídos da sociedade. Aí vivem experiências diferentes das festas e noitadas de fim de semana com colegas de farra ou mesmo simplesmente de folguedos. Será que você já atinou para a diferença entre a alegria e gozo dessas duas experiências? Como é que você voltou para casa depois de uma atividade pastoral, talvez austera e exigente? Que lhe passou pelo coração? E quando regressa dos finais de semana de bares e bailes? É a mesma coisa?
Confesso-lhe que foi essa percepção que me mudou a vida. Era só o começo. Ainda não estava maduro espiritualmente. Entreguei-me a exageros de austeridade, de penitência. Comecei despojando-me das vestes de nobre e trajando andrajos de um mendigo, com quem troquei de roupa. E assim peregrinei.
No meu tempo, a peregrinação fazia parte do imaginário religioso popular. Havia muitos lugares célebres para onde as pessoas se dirigiam na Idade Média e continuam a dirigir-se no meu tempo. O mais conhecido era o Santuário de São Tiago de Compostela. Eu preferi ir a dois santuários marianos.
Jovem, você não pode imaginar a beleza da experiência de peregrinar. Sei que agora está, de novo, em moda a peregrinação a São Tiago. Um escritor muito lido não só no Brasil, mas em muitas partes do mundo, Paulo Coelho escreveu livro best-seller sobre essa experiência. Ela conjuga vários sentimentos do coração. Para peregrinar despojamo-nos. Não dá para caminhar carregando uma mala de burguesia
A peregrinação levou-me também a Terra Santa. Era o horizonte maior de minha vida. Queria ir para lá, lá trabalhar e lá morrer. Fascinava-me pisar a terra
Aprendi mais uma vez que o seguimento de Jesus necessita ir além dessa imitação material, diria física, visual. Escutei dentro de mim um chamado maior, íntimo. E abriu-se-me uma compreensão diferente do mundo. Sobre ela desejo conversar com você.
Até então conhecera o mundo das mundanidades, da conversão penitente de mim mesmo, da peregrinação. Então fiz a descoberta mais importante de minha vida. Senti forte apelo para meter-me no mundo dos homens, das pessoas,. Não sozinho mas com companheiros que partilhassem comigo o mesmo ideal de ajudar quem estivesse à espera de uma palavra para apontar-lhe o caminho da salvação. Então sim, entendi que minha vida só teria sentido se eu me dedicasse à salvação das almas. Era assim que se falava no meu tempo.
Hoje, na sua linguagem, soariam as palavras: solidariedade, serviço, libertação dos pobres e excluídos, cuidado com pessoas famintas de sentido para viver e até de pão. Senti-me realmente enviado, no fundo da minha consciência, a toda pessoa que carecesse de alguma ajuda espiritual, material, humana, especialmente em relação a sua realidade última de criatura chamada por Deus para uma eternidade de amor e felicidade. Dedicar toda a vida a ajudar os outros na tarefa mais importante de sua vida. Formulei esse desejo na linguagem de meu tempo: “servir e amar a Divina Majestade”. Depois o resumi numa frase pequenina: ”em tudo amar e servir”.
Sabe, meu jovem, essa frasezinha tem feito sucesso. Quantos jovens como você se entusiasmaram por esse ideal de vida. “Em tudo amar e servir”. Ela relaciona o amor ao seu serviço e assim define profundamente que coisa seja amar. Em outro lugar, escrevi que o amor deve pôr-se mais em obras que em palavras. É fácil dizer que amamos a Deus, a Cristo, a uma pessoa e que queremos modificar essa realidade de tanta injustiça. Se paramos a pensar, será que as obras que praticamos manifestam e encarnam as palavras?
Amar consiste, assim percebi na minha vida, na comunicação mútua do que temos a quem amamos: ciência, honras, riquezas. Se v. olha para seus amigos e amigas, que é que você tem e que pode comunicar-lhes? Ser enviado é tomar consciência dessa dupla realidade para servir amando e amar servindo. Muitas vezes não pensamos que os dons, qualidades, graças, que recebemos tão generosamente de Deus, podem ser comunicados a outros. Sabe, que tal se você, ao ler essa carta, se fizesse essa pergunta: que posso partilhar de mim a outros, sobretudo aos jovens de minha idade?
Era essa pergunta que me fazia quando estudava na Sorbonne. E consegui fazer-me amigo de Francisco Xavier, Pedro Fabro que se tornaram depois grandes santos. Quem sabe que sua amizade e partilha com os colegas não os enriqueça muito além do que v. imagina!
Percebi, no meu tempo, que a Igreja católica passava por grande crise interna. Recém convertido e ardendo de fervor, doía-me ouvir que o Papa celebrara o casamento de sua filha no próprio Vaticano, que a Cúria romana, cardeais e bispos, se entregavam a uma vida mundana, sem zelo apostólico. E apesar disso, pensei numa Ordem religiosa posta à disposição do Papa por julgar que ele, pelo cargo que exercia, tinha maior visão dos problemas da Igreja e era para tal ajudado pelo Espírito de Deus. Movia-me a fé. Imagino que para você também a situação da Igreja e a do seu país em muitos aspectos gerem desânimo, descrédito e até mesmo indignação. Tanta injustiça social, tanta riqueza ao lado de multidões imensas de pobres, famintos. Em seu país há segmentos sociais que são discriminados por causa da raça, da pobreza, da falta de educação escolar e preparação para o trabalho hoje cada vez mais exigente. E que fazer?
A Ordem que fundei recebeu de mim uma inspiração na linha do “serviço da fé e da promoção da justiça”, como escreveram os meus filhos numa de suas Congregações Gerais. Fé e justiça são causas que merecem a vida de qualquer pessoa com um mínimo de idealismo. Quando penso na fé, sonho com você aprofundando a espiritualidade, participando de encontros e retiros, comprometendo-se na pastoral catequética da paróquia. A espiritualidade dos Exercícios Espirituais, que escrevi e que traduzem meu itinerário espiritual, põe no centro da fé o seguimento de Jesus. Como Ele foi enviado ao mundo, assim o cristão o é nas pegadas dele. V. conseguirá isso à medida que freqüentar na oração, na contemplação, na leitura meditada do Evangelho a pessoa de Jesus. A relação com a pessoa de Jesus robustece-nos a fé.
E a promoção da justiça? Como v. a pensa no seu país? Não saberia responder-lhe de maneira concreta. Isso lhe toca a você que conhece sua realidade. Mas posso passar-lhe a minha experiência. Vivi num momento que tem semelhança com o seu. Lembre-se que no século XVI a Igreja sofreu a ruptura da Reforma de Lutero. Como responder a esse desafio de evangelização na Europa e fora dela? Descobriam-se as Américas. Talvez fosse mais exato dizer que se colonizavam terras já habitadas por tribos indígenas de milhares de anos de existência. Os meus companheiros não tinham a consciência que v. tem hoje da originalidade, da importância das culturas autóctones e menos ainda de uma presença salvífica de Deus nelas. Imaginavam que a traziam de fora. E o fizeram com muito zelo. Assim entenderam o envio ao mundo. V. hoje sabe como Deus atua em todas as culturas e até mesmo no humanismo ateu. Sua missão presente perdeu aquele frescor e heroísmo de grande conquistador e evangelizador para ser um trabalho, não menos bonito, de formiguinha que, com pequenas picadas, desperta os colegas para uma Transcendência presente, mas não percebida.
Veja, meu jovem, cultivei com muito empenho a prática espiritual do discernimento na missão apostólica. No caso concreto de sua vida, ela implica de sua parte especial cuidado em descobrir os pontos luminosos presentes na noite mais escura da vida. É questão de atenção às pequenas iluminações que Deus, por meio de acontecimentos, pessoas, leituras, e quem sabe, até mesmo dessa simples carta, lhe concede para ver e perceber o atuar da graça. Saboreando essa gota de claridade, v. percebe melhor como ajudar o colega a descobri-la. Se v. a viu, talvez também ele consiga fazê-lo com um toque discreto de sua parte.
O ver é um primeiro passo. Fundamental, inicial. Os olhos se ligam à razão e essa ao núcleo do nosso ser. Entendemos que Deus está aí presente, interpelando, acordando-nos para o serviço. Deus é só amor. E quer unicamente o bem de cada um de nós. Essa compreensão alivia-nos de complexos de culpa, de sentimentos de inferioridade, de remorsos azedos. Ela nos impulsiona para um outro momento, para dentro do coração, da afetividade, para um sentimento interior profundo. Uma outra expressão que usei – sentire res interne – sentir a realidade internamente – fez escola. Dessa fonte do afeto brota um agir em vista de transformar a realidade que pode ser o seu minúsculo mundo interior ou estruturas maiores na escola, no trabalho, na universidade, no lazer, nas amizades.
Esse exercício espiritual supõe de você um duplo movimento. Sempre gostei de pequenas expressões didáticas para catalisar experiências profundas. Aqui vai outra. Contemplativo na ação. No atual mundo secular em decomposição, mesclado e imbuído, ao mesmo tempo, de uma chuva religiosa de ritos, canções, meditações transcendentais, gestuália carismática, não é fácil, em primeiro lugar, a ação comprometida. Facilmente as pessoas se perdem ou no descrédito total ou na maré religiosa sem exigência além da satisfação emocional. Há executivos de grandes empresas, que no cotidiano vivem o esquema neoliberal de acumulação de riquezas, mas que se entregam a contemplações de corte oriental ou carismático, justapostas à ação, que raramente repercutem em sua prática social. Antes cumprem o papel de sonífero espiritual, expondo-se à crueza crítica de Marx a respeito da Religião como ópio do povo.
Sonhei com uma relação bem diferente entre contemplação e ação, mantendo tanto a contemplação como a práxis libertadora, como vocês a chamam hoje na América Latina. Na clássica meditação do Reino, introduzo o exercitante por meio da parábola do chamado de um rei terrestre. Claro, você deve entender que eu vivia no mundo em que a figura do Rei nos enchia a fantasia, o imaginário. Contra o chamado do Rei temporal se pinta o verdadeiro chamado de Cristo que eu senti e que a meditação se propõe como apelo ao exercitante, a você a quem escrevo. Duas coisas pensei muito, vivi intensamente e proponho com entusiasmo. Imagine você se se apresentasse um líder político com a proposta de uma luta séria e empenhativa para a libertação dos pobres, o qual, ao olhar-lhe nos olhos, lhe dissesse: topa assumir comigo esse programa de vida? Ele prometia que participaria das dificuldades e perigos de todos vocês: prisão, torturas e até a morte violenta. Certamente você se recorda dos anos terríveis dos regimes militares em que muitos jovens da sua idade foram tragados mortalmente pela repressão. Eles não tiveram nenhum chefe disposto a morrer com eles. Mesmo assim, sem tal consciência, muitos foram até o extremo do dom de sua vida, sonhando com a libertação do povo. Com muito mais razão v. é provocado a dedicar-se hoje a causa semelhante, se algum líder se colocar a seu lado para o que der e vier. E agora, vem a virada. E se esse líder é o próprio Cristo que o convida para uma entrega de vida à missão de evangelização?! Ele que já lhe mostrou até onde seu amor chegou. Deixo-lhe essa última pergunta.
Sei que a cultura que o cerca erigiu o prazer como valor máximo. E prazer não pode ser contra o projeto de Deus. Foi ele que nos criou com as cinco janelas dos sentidos, abertas para o prazer. Como poderá querer que as fechemos? Santo Agostinho, que líamos muito na Sorbonne, escreveu um pequeno livro, lindo, uma pérola, sobre “A vida feliz”. Mas a questão consiste em saber qual é a felicidade que nos plenifica para além do gozo e prazer imediato. Eu conheci bem os dois lados da “felicidade”, imersão num mundo de prazeres sensíveis, e empenho de vida para ajudar os outros a encontrarem o caminho da salvação. Essa segunda experiência me encheu a alma. Se quiser, experimente dedicar-se ao bem dos outros e vivenciará o próprio bem e felicidade.
Com muita esperança em você, jovem, que desperta para ideais maiores na América Latina, fica meu abraço de velho marinheiro de guerra,
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