sábado, 26 de abril de 2014

O ofício de consolar


Em Tempo Pascal vem muito a propósito debruçarmo-nos sobre uma expressão muito própria dos Exercícios Espirituais, na 4ª semana do seu percurso, dedicada inteiramente aos mistérios da Ressurreição do Senhor. 

A graça que se pede nesta semana não é de fácil compreensão. Vejamos: “pedir graça para me alegrar e gozar intensamente de tanta glória e gozo de Cristo nosso Senhor”. (EE, 221) Se há sentimentos muito desejados, o da alegria é dos que ocupa os lugares mais altos da escala. Nascemos para ser felizes - dizemos e desejamos - e a graça coloca-nos num desafio ainda mais alto: uma alegria e gozo intensos. Não será desejar uma utopia? Critica-se muitas vezes o cristianismo que promete uma felicidade no além, enquanto aqui na terra vamos “gemendo e chorando neste vale de lágrimas”. A realidade limitada e pecadora que vivemos pessoalmente e vemos no mundo que nos rodeia martela-nos sem cessar, provocando esta dúvida: Alegria intensa, já aqui, onde? 
Dando o benefício da dúvida, já que a Ressurreição de Jesus é, por si mesma, um facto extraordinário, passemos ainda a uma consideração apresentada por Santo Inácio nesta 4ª semana: “reparar no ofício de consolar que Cristo nosso Senhor traz e compará-lo com o modo como os amigos se costumam consolar uns aos outros”. (EE, 224)  

A Ressurreição de Jesus dá-nos, pela fé, a certeza de que a morte, o sofrimento, o desespero não têm a última palavra. Não apenas quando falamos da experiência limite da nossa morte física, mas também das experiências quotidianas de morte: aos nossos desejos, às nossas relações, aos nossos projectos, ao nosso conforto, etc. É próprio da dimensão ressuscitada da vida não ficar parado à sombra das tristezas e desânimos, mas voltar à luz do sentido profundo das coisas e do bem amoroso que de tudo se pode tirar. Só nesta lógica se entende, por exemplo, a força do perdão e o compromisso com a justiça. Toda a aventura humana, por isso mesmo, é um contínuo realizar da ressurreição que, já acontecida, pede para ser levada a sério na vida de quem espera nesta fé. 

Esta atitude reflecte-se precisamente no “ofício de consolar”, próprio do Ressuscitado, que significa, na linguagem inaciana, levar ao aumento da fé, da esperança e do amor, assente numa experiência de paz e alegria nascidas da intimidade com Deus. [1] E este ofício de Jesus ressuscitado experimenta-se a partir do trato de amizade que os amigos têm quando se consolam uns aos outros. Não poderemos ver aqui a nossa missão como cristãos? O motivo e motor da existência não poderá ser este ministério da consolação? 
Pessoalmente, anima-me muito pensar na vida a partir deste horizonte, que tem um início cheio de vida e deseja trazer essa mesma vida ao mundo concreto em que estou. 

Desafio: O Cardeal Jorge Bergoglio, agora Papa Francisco, fez este apelo a uma nova forma de viver as relações: “Imitemos o nosso Deus, que nos precede e ama primeiro, realizando gestos de proximidade para os nossos irmãos que sofrem solidão, indigência, desemprego, exploração, falta de tecto, desprezo por serem migrantes, doença, isolamento entre os idosos. Dá o primeiro passo e leva, com a tua própria vida, o anúncio: Ele ressuscitou”. Não será isto mesmo a consolação que podemos realizar? 

[1] Chamo consolação, quando na alma se produz alguma moção interior, com a qual vem a alma a inflamar-se no amor de seu Criador e Senhor; e quando, consequentemente, nenhuma coisa criada sobre a face da terra pode amar em si mesma, a não ser no Criador de todas elas. E também, quando derrama lágrimas que a movem ao amor do seu Senhor, quer seja pela dor se seus pecados ou da Paixão de Cristo nosso Senhor, quer por outras coisas directamente ordenadas a seu serviço e louvor. Finalmente, chamo consolação todo o aumento de esperança, fé e caridade e toda a alegria interior que chama e atrai às coisas celestiais e à salvação de sua própria alma, aquietando-a e pacificando-a em seu Criador e Senhor. (EE, 316)

António Valério, sj 


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